A Noite Em Que Me Deflorei.

Aconteceu em uma noite de sábado.

O cenário: um casarão de "outrora" (lembro-me aqui da expressão usada por Rachel Green, em "Friends", ao responder para a amiga Phoebe sobre a época a qual pertencia uma determinada mobília que ela mentiu ser de um brechó), no meio de um terreno repleto de árvores centenárias, no meio do bairro do Ingá, em Niterói.

Sabia que seria diferente de tudo o que já teria visto em termos de arte. Mas não imaginava mergulhar tão profundamente. Já na entrada, fui tomada por um súbito medo, que fez meu coração disparar sem motivo algum. Fiquei transtornada, sobrecarregada por um  misto de emoções. Mal cabia em mim mesma e, densa que sou, senti que poderia me transbordar a qualquer momento O clima de mistério  envolveu-me, à princípio, de uma maneira quase que fantasmagórica. O pavor súbito e sem explicação me deixava ofegante. As pernas quase não suportavam mais o peso do meu corpo trêmulo. As mãos frias, que já não sabia onde colocar, na tentativa de disfarçar meu temor, pousavam disfarçadamente sobre o peito, numa vã tentativa de acalmar meus batimentos cardíacos.

Alguns personagens (acrescento, aqui, uma nota: pesquisei antes de escrever, não tinha muita certeza se iria me referir como "as personagens" ou "os personagens", mas tio google disse que ambos estão corretos, então pare de questionar e continue lendo) desfilavam pelo jardim, havia toda uma atmosfera de poesia no ar. Alguns eram melancólicos, outros tinham a tragédia em suas feições. Fui, aos poucos, me deixando penetrar por um sentimento de entrega, a respiração ganhou ritmo suave novamente e o coração voltou a bater em níveis aceitáveis. O medo do desconhecido foi se transformando em curiosidade, que foi se transformando em paixão. Sou desse tipo que se apaixona por lugares e situações. Já me apaixonei perdidamente pelas nuances de uma tarde de outono, enquanto passava de ônibus pelo Aterro do Flamengo. Uma outra coisa pela qual me encanto são os cheiros... ah, os cheiros... Há os pam-sexuais, que transam com qualquer coisa, já eu, sou uma pam-apaixonada, que me apaixono pelos mais variados objetos, cenários, luares, músicas e sensações.

A peça começou ainda do lado de fora, quando uma "meretriz" convida o público a entrar no que se pode chamar de um "prostíbulo intelectual", onde o público interage diretamente com os personagens, numa trama cheia de críticas à hipocrisia, onde tabus como morte, fantasias, fetiches e tantos outros temas controversos se emaranhavam entre o sagrado e o profano, instigando e aguçando todos os sentidos.

Dentro do casarão, atores encenavam o que poderia chamar de "primeiro ato", fiquei ali, paralisada, entre que encantada e chocada. Não vá pensando, querido leitor, que eu vou descrever a peça aqui! Ah, na-na-ni-na-não! Espero que a companhia traga o espetáculo para a cidade do Rio de Janeiro e seria um desrespeito contar o que vi lá dentro... quer saber o que acontece? Espere (melhor, faça uma campanha!) pela estréia da peça aqui no Rio (ou na sua cidade, porque, sem querer parecer arrogante, eu sei que tenho leitores pelo mundo todo).

Mas, continuando... 

Quando me dei conta, estava cega. Isso mesmo, completamente privada de minha visão. E foi aí que a mágica começou. Aromas, sons, toques, vozes, sabores, sussurros, líquidos, entrega, loucura, desejo, medo, tristeza, êxtase, sonho, fantasia e realidade. Tudo "junto e misturado" numa orgia de sensações.

Totalmente entregue ao meu condutor, privada daquilo que me dava mais confiança, comecei a acreditar nas coisas que não se pode ver. Milhões de pensamentos passavam rápido pela minha cabeça, não podia me agarrar a nenhum deles. Eram como espíritos zombeteiros, como vultos. Nada era real e, ao mesmo tempo, tudo era palpável. Literalmente.

No escuro eu pensava sobre tudo, e não pensava em nada. Pensava em todos e não pensava em ninguém. Às vezes me sentia do tamanho de um átomo, outras vezes era a senhora de todo o Universo. Não havia lugar para mais nada além do esforço para manter a sanidade, já embriagada pela mistura de lirismo e violência, poesia e bestialidade, desejo e repulsa, amor e ódio.

Quando finalmente terminou, me senti liberta. Foi como se todos os grilhões de pré-conceitos que eu nem sabia que tinha, caíssem por terra. Não saiu dali a mesma mulher que entrou. Ela perdeu-se em algum canto daquele casarão. Talvez sequestrada - ou mesmo morta - por algum personagem sombrio.

 Já às voltas com a realidade, cheguei à conclusão que nada é real. O concreto não existe. Somos fruto de criações de nossas próprias mentes, aprisionados por barreiras de papel, tão ou mais intransponíveis que a Grande Muralha da China. Sobrevivemos no meio do caos e da mentira, criando nossas próprias verdades, atuando em nossos próprios espetáculos. Fingindo ser aquilo que não somos para nos encaixarmos em padrões de comportamentos e aparência num jogo de poder em que, quase sempre, apostamos fichas que sequer temos como bancar.

Decidida a rasgar o véu dessa cegueira, me despi de tudo o que me incomodava, até então, naquele sábado à noite. Dei flores a mim mesma, e com seus espinhos, cortei na própria carne. Descobri que eu era toda chagas, toda remendo. Livre finalmente de tudo aquilo que acreditei, mesmo que sem querer, durante décadas,  aprendi que viver é nada mais do que deixar sangrar, porque cicatrizes deixam marcas e marcas dificilmente saem da pele. 



  






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