Lua de Sangue.

Sentado no chão do banheiro, observava a luminosidade da madrugada diminuindo pelo basculhante. Era noite de eclípse. Aliás, não era um eclípse qualquer! Esse fenômeno fora visto pouquíssimas vezes e sempre trouxe temor, rumores sobre o fim do mundo, prenúncio de guerras. Agora tanto fazia para ele, por que pensar em fim do mundo num momento como aquele? Procurava não pensar em nada, estranhamente estava tranquilo, consciente de tudo o que acontecera e certo de que o resultado não tardaria a chegar.

Ouvia toda a movimentação que vinha de fora pois morava em um bairro agitado. Garalhadas de uma mulher provavelmente embriagada ecoavam pelas vielas mal iluminadas, espantando os gatos vadios que buscavam alimento nas lixeiras dos becos. Sirenes e freadas também compunham aquela sinfonia urbana. A rua estava especialmente movimentada naquela noite, mesmo não sendo final de semana.

Do piso gelado do banheiro, ele se esticava vez ou outra, na intenção de conseguir ver o tão comentado eclipse. Nada ainda. Será que daria tempo?

Tirou uma carteira do bolso de trás do jeans, que estava jogado no chão, não muito distante. Abriu e pegou aquela velha foto amarela. Lembranças felizes giraram como em um carrossel, dentro de sua cabeça. Ficou tonto. Tantas coisas boas por trás daquela foto. A inicial amizade, a descoberta do amor, a cumplicidade, a coragem para anunciar ao mundo que estavam juntos e felizes. Pensou no apartamento que mobilharam juntos, cuja decoração ia do retrô ao pós moderno, passando pelo brega e com pitadas de bizarrices, como as cabeças de boneca que usavam para servir salgadinhos em dias de festa, cuja inspiração veio de um velho seriado de TV, que costumavam assistir juntos, no velho sofá de couro laranja.

Olhou para o lado e viu seu telefone. Sentiu raiva, quis pegá-lo e atirá-lo na parede. Mas pra quê? Despedaçar aquele aparelho não ia mudar nada. Talvez seria melhor torcer para que alguém ficasse com ele, quando tudo terminasse.

Lembrou daquela madrugada fatídica. Voltavam de uma festa, estavam felizes pois haviam se encontrado com bons amigos, dançaram até os pés doerem, riram muito e fizeram planos. Tiraram fotos, muitas fotos. Fotos de todos e de tudo! Deveriam ter deixado para ver as fotos em casa.

Na volta pra casa, conversavam animadamente, planejando o resto do final de semana. Quem sabe subiriam a serra e tomariam um reconfortante banho de cachoeira? Ou podiam simplesmente ficar em casa, assistindo alguns filmes, comendo pipoca... tanto fazia, contanto que estivessem juntos.

Numa dessas infelizes coincidências da vida, um morador que deixava sua casa ainda de madrugada para exercer seu ofício, esqueceu de verificar se o cachorro da família estava preso antes de abrir o portão, pois o bicho tinha o costume de aproveitar qualquer descuido dos donos para sair feito um foguete pelas ruas, colocando a família inteira para correr.

Assim, num momento de distração do dono, o pobre cãozinho passou correndo pelo portão e entrou na frente do carro. O condutor, que olhava, naquela fração de segundos uma das fotos recém tiradas com o celular, não teve tempo de frear e, tomado por seu último momento de piedade, desviou do pobre cachorrinho, chocando-se contra o poste que, com o impacto, partiu-se, tombando exatamente sobre seu acento. Foi instantâneo, disseram os médicos no hospital, talvez na esperança de consolá-lo.

Ali, sentado no chão do banheiro, perdendo as forças pouco à pouco, toda aquela cena foi repetidamente revisitada. Talvez numa tentativa de achar uma explicação divina para todo aquele sofrimento. Chegou a achar que Deus o havia abandonado por ser, como algumas pessoas da família o chamavam, um pecador. Talvez se não tivessem assumido seu amor um pelo outro, sua metade da laranja ainda estivesse viva... Teriam sido punidos por sua preferência sexual? Não tinha culpa alguma pelo que ocorrera, aliás, ninguém tinha culpa de nada. Nem ele, nem seu parceiro, nem o cachorro e muito menos o trabalhador que abriu o portão deixando o cãozinho fugir. Mas buscava algo que desse sentido a toda aquela tragédia.

Mais uma vez olhou pelo basculhante do banheiro, buscando a tal "Lua de Sangue", um espetáculo quase único. Já quase sem forças, num último esforço, apoiou-se na privada e conseguiu levantar um pouco o corpo, encontrando-a.

Lá estava ela. Não era tão vermelha quanto ele achava que seria, mas ficou feliz por ter conseguido testemunhar aquele espetáculo. E tinha certeza de que seria lembrado para sempre não apenas pelo que acontecera, como também por ter sido no dia que foi.

Olhando para o lado percebeu que a poça estava cada vez maior. Aquele líquido que esvaia-se de seu corpo e representava tanto a sua vida como a sua morte próxima. Numa coincidência do destino, uma sobrecarga na rede elétrica fez com que acabasse a luz em seu quarteirão. Entretanto, mesmo durante o eclípse, havia uma luminosidade que penetrava naquele banheiro frio. E, numa coincidência maior ainda, essa luminosidade tornou possível que aquela bela Lua ficasse refletida na poça vermelha, durante alguns minutos, levando à literalidade o termo Lua de Sangue.

Levantou os olhos e olhou em direção à porta do banheiro. Lá estava seu amor, de pé, belo como um anjo. E era justamente o que ele era agora, um anjo. E estava ali por ele, para levar-lhe para um local onde não haveria julgamentos, nem dor, nem desespero. Apenas o amor eterno.

Não foi azar ter tropeçado e ter batido com a cabeça no vaso sanitário, provocando aquele ferimento mortal. Foi a forma de Deus acertar um erro de percurso, que havia separado duas almas gêmeas.

Sorriu, estendendo a mão para o amado que viera buscá-lo e foi-se.


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