Depois daquela tarde (Parte I)

Houve uma tarde, há 23 anos atrás, que deveria ter sido como qualquer outra tarde. Entretanto coisas feitas e ditas mudaram uma vida para sempre. O peso das palavras demorariam anos para se dissipar de sobre aqueles ombros. A menina se tornou mulher carregando a culpa, a mágoa e a certeza de ter sido a única responsável pelo que havia escutado. E aquela tarde, que deveria fazer parte das doces memórias da adolescência, cuja lembrança causaria certa nostalgia para o resto de seus dias, marcou-lhe de maneira sombria por muito tempo. Servindo de cenário para pesadelos que a aterrorizaram durante quase uma década.

Pouco menos de um ano antes havia sido violentada. Não contara para ninguém. Tinha vergonha e nojo do que lhe haviam feito. Sentia-se, de certa forma, culpada por todo aquele mal. Como muitas vítimas de violência sexual, não denunciou seus agressores, tinha certeza não apenas da impunidade, como também de ser acusada por,  de certa forma, provocado a situação. Mesmo sabendo que essa não era a verdade, guardou o ocorrido para si. Buscou, em vão, esquecer. Mas não era tão simples assim.

Conheceu aquele que foi seu primeiro amor. Um colega da escola, alguém que era exatamente o que ela precisava para deixar para trás, de uma vez por todas, aquela experiência terrível de meses atrás e, finalmente, acabar com todos os bloqueios que ficaram. E foi através de uma aposta idiota feita entre amigos que eles deram o primeiro beijo.

Os dias que se seguiram foram, pelo menos para ela, de total felicidade.

Originou-se desse romance relâmpago muitas de suas preferências que perduram até hoje: o gosto pela chuva, a paixão por observar as luzes do Sumaré, o encanto pelo pôr-do-Sol no "Pico do Papagaio", a paixão pelo bairro que abriga a escola onde tudo começou - e terminou.

Os anos passaram e ela jamais o esqueceu. Tomaram rumos diferentes, como a maioria das pessoas que convive pelo curto período de tempo que dura o colegial. Muito embora essas ligações pareçam que vão durar para sempre quando temos 14 anos.

Nunca esqueceu seu sobrenome, a cor de seus olhos e pele. Nunca esqueceu seu telefone, seu endereço, suas preferências musicais. Todos os anos, no sexto dia do mês de março, sussurrava para ela mesma, na esperança que ele pudesse sentir seus votos: "feliz aniversário". Até alguns cheiros a lembravam de seu amor da juventude. Um desses cheiros é o cheiro de churros, pois foi durante uma dessas tardes frias de início de outono que ela ganhou a primeira rosa de sua vida. O cheiro daquela tarde era o cheiro da fritura adocicada do churros. Um cheiro forte de canela. Um cheiro que lhe abre o sorriso até os dias de hoje.

Ele não sabe, mas ela guarda o que restou daquela rosa - que talvez ele nem lembre de ter lhe dado - até hoje. Dentro de um livro, pois livros são objetos sagrados, em seu entendimento. Quase um quarto de século ainda há alguma coisa que ele tenha tocado em sua companhia. Algo para lembrar de como foi feliz naquelas poucas semanas em que foram namorados.

Outra coisa que seu antigo amor nem desconfia, é que ela fica com os olhos cheios de lágrimas todas as vezes que passa próximo ao local onde ele morava. E que essas lágrimas foram multiplicadas por cem quando aquele velho estádio do clube que é o segundo clube de coração da maioria dos cariocas foi demolido para dar lugar a um shopping, levando junto as lembranças daquela tarde no terraço do edifício, onde assistiram juntos a chegada do crepúsculo.

Naquela tarde ela se entregou para ele como não havia tido oportunidade de se entregar para outro antes, por amor. Tiraram-lhe essa oportunidade no dia em que foi forçada ao sexo. Ela não imaginava, mas tiraram muito mais que seu hímem (que, afinal, nem representa tanto assim), tiraram a oportunidade de dar continuidade ao que deveria ter sido o amor de sua vida.

Ela havia lhe dito, por vergonha do que havia lhe acontecido, que era virgem. Em sua cabeça, realmente era. Pois a verdadeira inocência é a inocência do espírito e isso ela ainda possuia. Então, buscou bloquear aquele maldito acontecimento de todas as maneiras possíveis. Não é mentira quando acredita-se do fundo do coração. Ainda mais quando dizemos uma mentira para salvar nossa integridade, nem que seja para nós mesmos.

Mentiu e ele, óbvio, percebeu que ela havia mentido. Talvez por ter-se sentido traído, talvez por achar que foi feito de bobo, ele lhe disse uma frase que ecoa nos ouvidos daquela já não tão mais menina até os dias atuais: "se você era virgem, eu sou o Papa".

Não há palavra que defina o que ela sentiu naquele momento: vergonha, nojo de si mesma, arrependimento, raiva, indignação. Nada que pudesse dizer reverteria o estrago, que já estava feito.

Por causa disso passou a evitar-lhe na escola, "terminaram" pode se assim dizer. Ela achava que se lhe contasse a verdade ele não acreditaria. Por que acreditar em alguém que mentiu sobre nunca ter transado? Na certa ele acharia que tudo o que ela já havia lhe falado eram mentiras.

Sua maneira de enfrentar aquela situação foi fazer besteiras. E como fez bobagens! Não assistia mais às aulas, passou a andar com a turma mais "barra pesada" da escola, aprontou tanto que foi expulsa do colégio. E não foi diferente com a outra escola. Aliás, piorou. Começou a beber, fumar...

Sentia-se culpada não apenas pelo esturpo, mas por "ter feito de palhaço" aquele a quem tanto amou. Achou que realmente era uma vadia e vadias não merecem consideração, nem mesmo delas mesmas. Punia-se por não poder punir quem havia lhe feito mal e punia-se por ter permitido que tivessem lhe feito mal. Pior: numa busca por ajuda, contou aos pais o que havia acontecido. Ouviu que havia gostado, caso contrário teria denunciado à época do ocorrido. Nem preciso comentar sobre os estragos na cabeça de uma menina de 15 anos que já era prisioneira de uma mente atormentada. Gritava por socorro em silêncio e são poucas as criaturas que conseguem ouvir o silêncio do jeito que ela ouve.

Durante mais algum tempo continuou a se punir, entregando-se à pessoas erradas. Entregava-se a qualquer um que pudesse lhe dar um pouco de afeto. Tinha necessidade de se sentir amada. Tinha uma certa urgência de ouvir, de quem quer que fosse, um simples "eu te amo". Não ouviu. E se odiou ainda mais por isso. se ninguém a amava, por certo que era sua culpa. Seguiu seu caminho vivendo perigosamente, o que hoje em dia as pessoas chamam de "vida louca". Não sentia medo de nada, nem de ninguém. Respirava adrenalina. Alimentava-se dela, na verdade. Talvez toda aquela adrenalina pudesse ajudar a correr tão rápido que deixasse toda aquela dor tão pra trás, num local tão distante que dela nunca mais veria o mínimo rastro. Talvez numa dessas esquinas, no meio da fuga desenfreada de si mesma, encontrasse alguém que estivesse fugindo de si mesmo também, e pudessem dar as mãos e seguir em frente, libertos de toda culpa, de todo sofrimento. De todo remorso por algo que sequer haviam feito.

Durante muitos anos seguiu sonhando com aquela tarde, sonhava que seu antigo amor havia lhe reencontrado e lhe resgatado de toda aquela loucura. Sonhava que se entregava aos velhos beijos apaixonados, na velha varanda frontal do colégio, enquanto a chuva caia. Fazendo planos, falando bobagens, rindo como bobos que eram. Mas o sonho sempre se tornava pesadelo, tudo escurecia e ele, do alto de seus mais de 1,80m, olhava-lhe com olhos raivosos e lhe dizia a frase que ainda a assombraria por muito tempo: "Se você era virgem, eu sou o Papa!". Acordava chorando.


Continua...





















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