O Moço da Bicicleta Preta

Debruçada sobre o muro de uma antiga casa em um bairro distante da cidade ela aguardava pela hora em que o moço passaria em sua velha bicicleta preta de rodas coloridas. Ele nunca observou sua presença, mesmo assim ela insistia em estar ali, no cair da noite, na esperança de um dia ser notada. Sobre ele, sabia quase tudo, seu nome, a rua onde morava, a idade aproximada e o nome dos pais, antigos moradores da localidade.

Quando deitada em sua cama, fechava os olhos e criava situações diversas em sua cabeça, uns dias, imaginava que seus olhos se cruzariam exatamente no momento em que os últimos raios de Sol iluminassem seus olhos, ressaltando-lhe o castanho dos olhos e o vermelho da boca. N'outros, imaginava que talvez ele, distraído, tombasse de seu meio de transporte e ela partiria, então, em seu socorro, sendo arrebatado por seu sorriso largo e seu coração cuidadoso.

Os dias passavam e a situação permanecia a mesma. Ela esperava, ele passava, nem sequer um olhar. Ela, triste, voltava a seu mundo de sonhos e devaneios, ouvindo canções melancólicas e planejando tomar uma atitude que nunca se concretizava. Os dias se transformavam em semanas, que viravam meses.

Era uma tarde de fevereiro quando aconteceu. Havia feito um calor quase insuportável durante o dia e nuvens carregadas se aproximavam, na distração de sua rotina de trabalho e estudos, não notara que a geladeira nada mais tinha além de duas cebolas, uma garrafa d'água pela metade e uma panela com um pouco de arroz que havia jantado no dia anterior.

Olhou para o relógio e lembrou-se do horário em que seu amado passaria, já próximo. Dessa vez não havia escolha, ou iria ao mercado ou ficaria com fome, já que tratava-se de uma terça-feira e não haveria nenhum comércio onde pudesse pedir um lanche nas proximidades. Olhou o céu carregado e, enchendo-se de coragem, rumou ao estabelecimento onde compraria o jantar e provisões para os próximos dias.

Durante a caminhada, pensou que não lembrava de como as coisas eram distantes naquela localidade. Sentiu a brisa inicial tornar-se em vento daquele que joga terra nos olhos e, em poucos minutos, transformar-se em violento vendaval. No céu, as nuvens espessas transformavam o dia em noite e pingos grossos logo começaram a molhar seu rosto.

Esqueceu a fome e iniciou seu retorno até seu lar, onde estaria segura. Começou a caminhar cada vez mais rápido, sob uma chuva torrencial e com o ruído assustador de raios e trovões que iluminavam o céu. Quando deu por si, corria.

A casa era bem distante, ainda faltavam três quarteirões para a segurança de seu teto. Foi quando aconteceu. 

O moço bonito da bicicleta preta pôs-se lado a lado com aquela moça, totalmente encharcada, falando-lhe nervosamente - um pouco constrangido, também - "Oi, sobe, te levo em casa". Os segundos que demoraram até que ela lhe respondesse pareciam uma eternidade. A voz sumiu de sua garganta. Apenas balbuciou algo que seria um "Obrigada".

Subiu na velha bicicleta preta e foram, apressados, em direção à sua casa. 

Lá chegando, desceu ainda atônita e sem saber o que dizer. Em um rompante apenas disse "Está chovendo muito, entre até que passe". Ele, um tanto tímido, sorriu quase imperceptivelmente e cedeu.

O vendaval, associado à chuva, causaram uma queda de energia e a residência encontrava-se sem luz, transformando a atmosfera um tanto quanto desconfortável, mas extremamente convidativa.

Ela dirigiu-se ao banheiro, onde tirou as roupas molhadas. Quando chegou à sala, trajava um belo vestido coral, com estampa de pequenas flores amarelas. Secava os cabelos com uma toalha branca e exalava um aroma adocicado. Ele permanecia de pé, temendo molhar o sofá bege. Ela ofereceu-lhe uma toalha e ele aceitou, permanentemente constrangido.

Lembrou de roupas que o irmão esquecera após a última visita, ofereceu-as ao seu salvador das tempestades que, como encontrava-se molhado e coberto de lama do percurso que fizera antes de encontrá-la, aceitou de bom grado., dirigindo-se ao banheiro para trocar-se.

Quando retornou, já limpo e seco, encontrou a sala iluminada por velas aromáticas e uma semi-escuridão, só interrompida pela luz dos raios da tempestade que ainda caia violentamente la fora.

Sentaram um tanto quanto distantes um do outro, não havia muito assunto, apenas olhares que se encontravam nervosos. Ela agradecia a carona enquanto ele dizia que não havia feito mais que a obrigação e agradecia pela roupa seca: "Amanhã eu devolvo, sem falta".

Houve um momento de silêncio entre os dois, interrompido por um "Sempre a vejo debruçada sobre o muro, há tempos tinha vontade de parar, cumprimentar, mas sei que você provavelmente espera pelo seu namorado". 

O coração da moça disparou. Não sabia o que pensar. Pensara durante meses que seu amado jamais a havia notado. "Não tenho namorado", respondeu. Ele a olhou e pensou em falar mais alguma coisa, que seria totalmente desnecessária, pois a expressão de seu rosto deixava bem claro o que se passava dentro de sua cabeça naquele momento.

Ela, num ímpeto de coragem, emendou "Fico ali todos os dias apenas pra ver você passar". 

Ele levantou-se da poltrona onde estava sentado, mas não sabia se caminhava até a direção da moça ou se sentava novamente. Era um moço inteligente, bonito e bem articulado, mas as cicatrizes da vida e a dureza do cotidiano o tinham tornado um tanto quanto inseguro.

Ela também se levantou do velho sofá bege, caminhando em sua direção. Quando estavam a poucos centímetros um do outro, ela pode finalmente olhar mais cuidadosamente para seu rosto, coisa que não fizera durante o tempo que estava na bicicleta, pois permaneceu olhando em direção ao chão, já que as gotas fortes machucavam-lhe a tez.

Notou os fios grisalhos em meio à barba negra, os olhos castanhos, quase negros, amendoados. A calvície lhe tinha roubado muitos dos fios de cabelo, mas lhe presentearam com uma beleza pouco vista em outros homens. Não havia beleza igual a do moço da bicicleta preta.

Houve total sincronia quando ambos procuraram os lábios um do outro. O céu, em festa, comemorava o encontro daquelas duas almas que se procuravam há tempos, num festival de sons e luzes. 

Acordaram abraçados no dia seguinte, ali, no tapete daquela sala, num bairro afastado dos subúrbios da cidade.


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