Carta a Bruno e João.


Amor. São quatro letrinhas que estão disponibilizadas exatamente na ordem em que se encontram no alfabeto.

A.

Ah, se eu soubesse, no dia em que nossas almas se encontraram, que hoje meu coração se encheria de alegria simplesmente com o som de suas vozes em meu ouvido e que a ternura me banharia inteira a cada vez que meus olhos conseguem visualizar suas presenças.

M.

Meus dias geralmente se iniciam ou terminam na companhia de um de vocês. São sons, imagens, trocas até meio bizarras em horários nem sempre convenientes, como vídeo-chamadas às duas da manhã, mas que sempre me arrancam risadas e reflexões.

O.

Opostos. Vocês dois são exatamente um oposto do outro. E que bom que assim seja. Porque nesse embate de temperamentos e temperaturas, quem ganha sou eu. Aconchegada por tantos carinhos invisíveis.

R.

Risadas. Não sei quem dos dois tem a risada mais gostosa, juro! Mas reconheço-as de olhos fechados e a quilômetros de distância. Distância que eu não vejo a hora de vencer. 

Amor.

Eu amo quando vocês estão amando, porque é quando ficamos ainda mais confidentes. É quando eu conheço vocês mais a fundo e vivo a felicidade de vocês. Mas no fundo, eu confesso, por muitas vezes sinto frustração, raiva e mágoa por aquelas que receberam o amor dos dois em vão. Por aquelas que não valorizaram a oportunidade divina que lhes batia à porta.

Mas depois eu percebo o quão sortuda eu sou. Porque acordo todos os dias sendo amada por vocês. Todos os dias eu tenho o Bruno e o João pra mim. E o melhor: vocês nunca irão embora.

Amo vocês, meus homens!

Sylvia de Aguiar Alves
14 de Novembro de 2018. 20:10h.

Sobre Verdades

Meu amigo entre a fantasia e a realidade,
A distância é de um aperto de mão.
Da mentira para chegar-se à verdade,
A distância é a dor da desilusão.

Quando comento poesias, faço-o com a intenção,
De atingir a fantasia do seu criador,
Daquele que desnuda sua alma com emoção,
Cantando seu amor ou lamentando sua dor

Tudo tem de ter um real propósito,
Não há atitude sem que haja uma razão.
Onde houver dor ou espanto, se ouvirá um grito,
A existência perderia o encanto sem a ilusão.

Se eu disser, te amo! Acreditarás ou não!
E se gritar que te odeio, terá de haver uma explicação!
Atores quantas vezes dizem isso em encenação,
No que disser tem a verdade de trabalho, o resto falação.

Eu sei separar o joio do trigo e aproveitar a oportunidade,
De lançar uma semente de fraternidade que não faz mal a ninguém.
Em terreno fértil ela germinará e trará certamente felicidade,
E com certeza não fará mal algum, a quem necessidade não tem.


O Moço da Bicicleta Preta

Debruçada sobre o muro de uma antiga casa em um bairro distante da cidade ela aguardava pela hora em que o moço passaria em sua velha bicicleta preta de rodas coloridas. Ele nunca observou sua presença, mesmo assim ela insistia em estar ali, no cair da noite, na esperança de um dia ser notada. Sobre ele, sabia quase tudo, seu nome, a rua onde morava, a idade aproximada e o nome dos pais, antigos moradores da localidade.

Quando deitada em sua cama, fechava os olhos e criava situações diversas em sua cabeça, uns dias, imaginava que seus olhos se cruzariam exatamente no momento em que os últimos raios de Sol iluminassem seus olhos, ressaltando-lhe o castanho dos olhos e o vermelho da boca. N'outros, imaginava que talvez ele, distraído, tombasse de seu meio de transporte e ela partiria, então, em seu socorro, sendo arrebatado por seu sorriso largo e seu coração cuidadoso.

Os dias passavam e a situação permanecia a mesma. Ela esperava, ele passava, nem sequer um olhar. Ela, triste, voltava a seu mundo de sonhos e devaneios, ouvindo canções melancólicas e planejando tomar uma atitude que nunca se concretizava. Os dias se transformavam em semanas, que viravam meses.

Era uma tarde de fevereiro quando aconteceu. Havia feito um calor quase insuportável durante o dia e nuvens carregadas se aproximavam, na distração de sua rotina de trabalho e estudos, não notara que a geladeira nada mais tinha além de duas cebolas, uma garrafa d'água pela metade e uma panela com um pouco de arroz que havia jantado no dia anterior.

Olhou para o relógio e lembrou-se do horário em que seu amado passaria, já próximo. Dessa vez não havia escolha, ou iria ao mercado ou ficaria com fome, já que tratava-se de uma terça-feira e não haveria nenhum comércio onde pudesse pedir um lanche nas proximidades. Olhou o céu carregado e, enchendo-se de coragem, rumou ao estabelecimento onde compraria o jantar e provisões para os próximos dias.

Durante a caminhada, pensou que não lembrava de como as coisas eram distantes naquela localidade. Sentiu a brisa inicial tornar-se em vento daquele que joga terra nos olhos e, em poucos minutos, transformar-se em violento vendaval. No céu, as nuvens espessas transformavam o dia em noite e pingos grossos logo começaram a molhar seu rosto.

Esqueceu a fome e iniciou seu retorno até seu lar, onde estaria segura. Começou a caminhar cada vez mais rápido, sob uma chuva torrencial e com o ruído assustador de raios e trovões que iluminavam o céu. Quando deu por si, corria.

A casa era bem distante, ainda faltavam três quarteirões para a segurança de seu teto. Foi quando aconteceu. 

O moço bonito da bicicleta preta pôs-se lado a lado com aquela moça, totalmente encharcada, falando-lhe nervosamente - um pouco constrangido, também - "Oi, sobe, te levo em casa". Os segundos que demoraram até que ela lhe respondesse pareciam uma eternidade. A voz sumiu de sua garganta. Apenas balbuciou algo que seria um "Obrigada".

Subiu na velha bicicleta preta e foram, apressados, em direção à sua casa. 

Lá chegando, desceu ainda atônita e sem saber o que dizer. Em um rompante apenas disse "Está chovendo muito, entre até que passe". Ele, um tanto tímido, sorriu quase imperceptivelmente e cedeu.

O vendaval, associado à chuva, causaram uma queda de energia e a residência encontrava-se sem luz, transformando a atmosfera um tanto quanto desconfortável, mas extremamente convidativa.

Ela dirigiu-se ao banheiro, onde tirou as roupas molhadas. Quando chegou à sala, trajava um belo vestido coral, com estampa de pequenas flores amarelas. Secava os cabelos com uma toalha branca e exalava um aroma adocicado. Ele permanecia de pé, temendo molhar o sofá bege. Ela ofereceu-lhe uma toalha e ele aceitou, permanentemente constrangido.

Lembrou de roupas que o irmão esquecera após a última visita, ofereceu-as ao seu salvador das tempestades que, como encontrava-se molhado e coberto de lama do percurso que fizera antes de encontrá-la, aceitou de bom grado., dirigindo-se ao banheiro para trocar-se.

Quando retornou, já limpo e seco, encontrou a sala iluminada por velas aromáticas e uma semi-escuridão, só interrompida pela luz dos raios da tempestade que ainda caia violentamente la fora.

Sentaram um tanto quanto distantes um do outro, não havia muito assunto, apenas olhares que se encontravam nervosos. Ela agradecia a carona enquanto ele dizia que não havia feito mais que a obrigação e agradecia pela roupa seca: "Amanhã eu devolvo, sem falta".

Houve um momento de silêncio entre os dois, interrompido por um "Sempre a vejo debruçada sobre o muro, há tempos tinha vontade de parar, cumprimentar, mas sei que você provavelmente espera pelo seu namorado". 

O coração da moça disparou. Não sabia o que pensar. Pensara durante meses que seu amado jamais a havia notado. "Não tenho namorado", respondeu. Ele a olhou e pensou em falar mais alguma coisa, que seria totalmente desnecessária, pois a expressão de seu rosto deixava bem claro o que se passava dentro de sua cabeça naquele momento.

Ela, num ímpeto de coragem, emendou "Fico ali todos os dias apenas pra ver você passar". 

Ele levantou-se da poltrona onde estava sentado, mas não sabia se caminhava até a direção da moça ou se sentava novamente. Era um moço inteligente, bonito e bem articulado, mas as cicatrizes da vida e a dureza do cotidiano o tinham tornado um tanto quanto inseguro.

Ela também se levantou do velho sofá bege, caminhando em sua direção. Quando estavam a poucos centímetros um do outro, ela pode finalmente olhar mais cuidadosamente para seu rosto, coisa que não fizera durante o tempo que estava na bicicleta, pois permaneceu olhando em direção ao chão, já que as gotas fortes machucavam-lhe a tez.

Notou os fios grisalhos em meio à barba negra, os olhos castanhos, quase negros, amendoados. A calvície lhe tinha roubado muitos dos fios de cabelo, mas lhe presentearam com uma beleza pouco vista em outros homens. Não havia beleza igual a do moço da bicicleta preta.

Houve total sincronia quando ambos procuraram os lábios um do outro. O céu, em festa, comemorava o encontro daquelas duas almas que se procuravam há tempos, num festival de sons e luzes. 

Acordaram abraçados no dia seguinte, ali, no tapete daquela sala, num bairro afastado dos subúrbios da cidade.


O Quarto Vermelho

No escuro do quarto ela espera nua. Faz frio, mas seu corpo está quente, mais quente que o normal, num estado quase febril. Os olhos semicerrados acompanham o movimento dos dedos entre as pernas... os lábios balbuciam um nome qualquer, num chamado quase inaudível. Ele abre a porta e a encara, fixa seus olhos em seu sexo que escorre de desejo, ele sabe que cada gota desse mel lhe pertence.

Lentamente se aproxima pela lateral da cama, já se despindo. Ajoelhado na cama, a faz provar sua carne, sua rigidez. Ela sente seu gosto em sua língua, sorvendo cada gota de seu prazer. Ele geme baixo, ainda tímido, procurando o espaço entre as pernas dela com suas mãos.

Ela está, agora, engolindo seu sexo com vigor. Move a cabeça ritmadamente, olhando em seus olhos, esperando sua mão de contra o rosto. Ele entende o recado e a esbofeteia, chama-a puta, diz que é seu homem. Ela apenas concorda com a cabeça e continua a sugá-lo, submissa.

Sentindo aproximar-se o gozo ele, gentil, interrompe o momento profano a beija os lábios. Os dedos ainda em seu sexo, cada vez mais protuberante e encharcado. Logo vai descendo, sugando-lhe os seios, mordendo os mamilos, beijando seu ventre e, finalmente, pousando sua língua entre as pernas.
 Entre lambidas e chupadas, ela se descontrola. Tenta empurrar sua cabeça para longe, ele não deixa. Segurando firme suas mãos, segue a possuindo.

Depois de arrancar-lhe gritos e gemidos, sobe novamente de encontro a seu rosto, beija a boca, coloca seu sexo entre seus seios e a ordena que lhe dê prazer. Ela obedece e faz o que ele pediu, encarando-o com uma malícia quase demoníaca. Se houvesse anjos no quarto vermelho, certamente tapariam os olhos para não testemunharem tal olhar.

Mais uma bofetada, agora ele a penetra com força, sentindo sua temperatura e textura internas. Ela o xinga e agora é sua mão que o esbofeteia, na loucura do orgasmo que se aproxima. Ele pára e a faz implorar por mais. Ela implora e fica de quatro, se ofereço feito cadela no cio. Ele a monta como um garanhão. Introduz tudo de uma única vez. Há dor, mas não há um grito, pois ele, a essa altura, já tapou sua boca com uma das mãos, enquanto segura-lhe os cabelos com a outra.

Estocada após estocada, estão cada vez mais exaurido, suor de ambos os corpos se misturam, enquanto ele a segura pela cintura e puxa cada vez mais violentamente seu corpo para junto do dele. Os dedos dela movem-se vertiginosamente em seu sexo, enquanto diz coisas inconfessáveis. Ela é sua puta, sua vadia, sua cadela. Ele é seu homem, seu macho, seu dominador.

O ritmo aumenta conforme o orgasmo se aproxima. Ela goza. Seus músculos apertam seu membro que lateja de prazer, pronto pra esparramar seu líquido quente  Ela se desencaixa e fica de frente, para receber cada gota em seu busto, o que logo acontece. Seu gozo escorre pelos seios, especialmente nos mamilos. Há um pouco também nos lábios, que ela trata logo de sorver.


Findado o balé, deitam-se lado a lado, exaustos. Se olham e se beijam. Logo, ecoa no quarto uma gargalhada e ambos adormecem, já pensando no momento em que acordarão e iniciarão o segundo ato, afinal, o “The Show Must Go On”;

A Arraia.



Nadando em um mar de alvidez, vai a arraia. Nenhum mal é capaz de toca-la ou penetrar seu universo particular. Ela é toda poesia em seus movimentos, majestosa e altiva. Qualquer lugar é seu oceano, é dona de tudo e de todos que ousam passar em seu caminho.
Misterioso animal levado por seus instintos, belo e mortal, emoldurada no castanho dos meus olhos ela apenas passa de um lado para o outro, sem notar minha presença. Para conseguir observa-la, fico totalmente submersa em água salgada, ainda em dúvida se estou no mar ou em uma lagoa formada pelas lágrimas que chorei noite após noite. Sem fôlego, já sentindo a vida saindo de mim, permaneço petrificada, olhando o bicho que passa indiferente à minha presença.
Em vão, tento estender as mãos e tocá-la. Quanto mais me aproximo, mais ela se distancia. Foge de mim rápida e voraz, ferindo-me sem ao menos ter lançado seu ferrão. Mata-me. Ata-me. Liberta-me.
Tomada pela falta de oxigênio, desfaleço. Os olhos vidrados, voltados para a luz que passa através da água que me cobre. Sem esperança afundo como se houvesse uma âncora amarrada aos meus pés. A escuridão vem, os sons somem aos poucos. A arraia, como que sentindo o que me aguarda, aproxima-se e apenas me observa. Vou descendo até tocar o fundo, imóvel. Vencida.
Acordo envolta em suor, com a respiração ofegante. Busco o ar que achava me faltar. O quarto tomado pela luz primaveril me diz que a vida continua. Surpresa e aliviada percebo que tudo não passou de um sonho. Tudo não passou de um sonho.

A Noite Em Que Me Deflorei.

Aconteceu em uma noite de sábado.

O cenário: um casarão de "outrora" (lembro-me aqui da expressão usada por Rachel Green, em "Friends", ao responder para a amiga Phoebe sobre a época a qual pertencia uma determinada mobília que ela mentiu ser de um brechó), no meio de um terreno repleto de árvores centenárias, no meio do bairro do Ingá, em Niterói.

Sabia que seria diferente de tudo o que já teria visto em termos de arte. Mas não imaginava mergulhar tão profundamente. Já na entrada, fui tomada por um súbito medo, que fez meu coração disparar sem motivo algum. Fiquei transtornada, sobrecarregada por um  misto de emoções. Mal cabia em mim mesma e, densa que sou, senti que poderia me transbordar a qualquer momento O clima de mistério  envolveu-me, à princípio, de uma maneira quase que fantasmagórica. O pavor súbito e sem explicação me deixava ofegante. As pernas quase não suportavam mais o peso do meu corpo trêmulo. As mãos frias, que já não sabia onde colocar, na tentativa de disfarçar meu temor, pousavam disfarçadamente sobre o peito, numa vã tentativa de acalmar meus batimentos cardíacos.

Alguns personagens (acrescento, aqui, uma nota: pesquisei antes de escrever, não tinha muita certeza se iria me referir como "as personagens" ou "os personagens", mas tio google disse que ambos estão corretos, então pare de questionar e continue lendo) desfilavam pelo jardim, havia toda uma atmosfera de poesia no ar. Alguns eram melancólicos, outros tinham a tragédia em suas feições. Fui, aos poucos, me deixando penetrar por um sentimento de entrega, a respiração ganhou ritmo suave novamente e o coração voltou a bater em níveis aceitáveis. O medo do desconhecido foi se transformando em curiosidade, que foi se transformando em paixão. Sou desse tipo que se apaixona por lugares e situações. Já me apaixonei perdidamente pelas nuances de uma tarde de outono, enquanto passava de ônibus pelo Aterro do Flamengo. Uma outra coisa pela qual me encanto são os cheiros... ah, os cheiros... Há os pam-sexuais, que transam com qualquer coisa, já eu, sou uma pam-apaixonada, que me apaixono pelos mais variados objetos, cenários, luares, músicas e sensações.

A peça começou ainda do lado de fora, quando uma "meretriz" convida o público a entrar no que se pode chamar de um "prostíbulo intelectual", onde o público interage diretamente com os personagens, numa trama cheia de críticas à hipocrisia, onde tabus como morte, fantasias, fetiches e tantos outros temas controversos se emaranhavam entre o sagrado e o profano, instigando e aguçando todos os sentidos.

Dentro do casarão, atores encenavam o que poderia chamar de "primeiro ato", fiquei ali, paralisada, entre que encantada e chocada. Não vá pensando, querido leitor, que eu vou descrever a peça aqui! Ah, na-na-ni-na-não! Espero que a companhia traga o espetáculo para a cidade do Rio de Janeiro e seria um desrespeito contar o que vi lá dentro... quer saber o que acontece? Espere (melhor, faça uma campanha!) pela estréia da peça aqui no Rio (ou na sua cidade, porque, sem querer parecer arrogante, eu sei que tenho leitores pelo mundo todo).

Mas, continuando... 

Quando me dei conta, estava cega. Isso mesmo, completamente privada de minha visão. E foi aí que a mágica começou. Aromas, sons, toques, vozes, sabores, sussurros, líquidos, entrega, loucura, desejo, medo, tristeza, êxtase, sonho, fantasia e realidade. Tudo "junto e misturado" numa orgia de sensações.

Totalmente entregue ao meu condutor, privada daquilo que me dava mais confiança, comecei a acreditar nas coisas que não se pode ver. Milhões de pensamentos passavam rápido pela minha cabeça, não podia me agarrar a nenhum deles. Eram como espíritos zombeteiros, como vultos. Nada era real e, ao mesmo tempo, tudo era palpável. Literalmente.

No escuro eu pensava sobre tudo, e não pensava em nada. Pensava em todos e não pensava em ninguém. Às vezes me sentia do tamanho de um átomo, outras vezes era a senhora de todo o Universo. Não havia lugar para mais nada além do esforço para manter a sanidade, já embriagada pela mistura de lirismo e violência, poesia e bestialidade, desejo e repulsa, amor e ódio.

Quando finalmente terminou, me senti liberta. Foi como se todos os grilhões de pré-conceitos que eu nem sabia que tinha, caíssem por terra. Não saiu dali a mesma mulher que entrou. Ela perdeu-se em algum canto daquele casarão. Talvez sequestrada - ou mesmo morta - por algum personagem sombrio.

 Já às voltas com a realidade, cheguei à conclusão que nada é real. O concreto não existe. Somos fruto de criações de nossas próprias mentes, aprisionados por barreiras de papel, tão ou mais intransponíveis que a Grande Muralha da China. Sobrevivemos no meio do caos e da mentira, criando nossas próprias verdades, atuando em nossos próprios espetáculos. Fingindo ser aquilo que não somos para nos encaixarmos em padrões de comportamentos e aparência num jogo de poder em que, quase sempre, apostamos fichas que sequer temos como bancar.

Decidida a rasgar o véu dessa cegueira, me despi de tudo o que me incomodava, até então, naquele sábado à noite. Dei flores a mim mesma, e com seus espinhos, cortei na própria carne. Descobri que eu era toda chagas, toda remendo. Livre finalmente de tudo aquilo que acreditei, mesmo que sem querer, durante décadas,  aprendi que viver é nada mais do que deixar sangrar, porque cicatrizes deixam marcas e marcas dificilmente saem da pele. 



  






Sobre Finais de Ano.

Vai chegando essa época do ano e o coração vai amolecendo - ainda mais - devido às festas de final de ano. É aquela época em que começamos a planejar as festas, lembrar dos que se foram, ouvir aquelas musiquinhas que, mesmo chatinhas, não saem de nossas cabeças.

Eu, que já sou emotiva e choro por qualquer coisa, fico ainda mais sensível nessa época. Bom, falando assim parece que sou daquele tipo cheio de frescuras, para quem não se pode levantar o tom da voz , por exemplo. Calma, querido leitor! Não é nada disso.

Posso dizer que sou a sensibilidade em forma de gente. Tudo me afeta profundamente: cores, músicas, lugares, temperaturas. Meu humor vai desde a louca ensandecida até a princesa apaixonada de acordo com o que vou captando à minha volta. Nada me passa desapercebido, nada.

O fantástico de sensível ao extremo é que não reconheço apenas o que me é externo. Tenho um profundo conhecimento de mim mesma. Nunca confundo sentimentos - bem, não os meus - jamais falo alguma coisa que não tenha certeza de que esteja sentindo. Embora me precipite externando coisas que deveriam permanecer ocultas em minha mente. Fazer o quê? Essa sou eu.

Uma coisa que acaba comigo é o Papai Noel. Podem falar qualquer coisa: que é um símbolo de consumo, que não reflete a realidade cotidiana de milhões de pessoas do planeta... não importa, o bom velhinho me encanta. Não posso ver um que os olhos se enchem de lágrimas e eu abro aquele sorriso.

Ah, e as árvores? Não falo dessas árvores de material sintético que enfeitam as salas das pessoas, me refiro àquelas cujo vizinhança se une para ornamentar com milhares de luzinhas brilhantes. Parece uma constelação a cada virada de esquina.

Me encanta, também, ver o brilho nos olhos dos pequeninos. Impossível não me comover quando vejo uma criança entregando uma cartinha ao Papai Noel. E, tantas vezes, são pedidos tão simples. Quem dera poder atender aos pedidos de todas as crianças do mundo. Pronto... comecei a ficar com lágrimas nos olhos...

Inegavelmente uma outra forte razão pela qual sou apaixonada - gente, fazer o que se eu me apaixono por qualquer coisa? - são as comidas. Me julguem!


Afinal, não é todo dia que colocamos em nossas mesas aquele peruzão - eu disse peru, se acalmem - um tender finamente fatiado, pudins, bolos, panetone, rabanadas... hummm... Claro que não dá pra esquecer a fome e a miséria do mundo, ainda mais quando você atua nessa área, profissionalmente falando. Mas seria hipocrisia minha fingir que não fico feliz na época do Natal.

Por mais inacreditável que seja, até aquela música da Simone me faz chorar. E quando escuto a versão original do Lennon, Happy Xmas (War Is Over), choro com-pul-si-va-men-te. Vamos combinar que essa música meche com a gente, né não?

Bem... é isso... Matei a saudade de vocês falando um pouco sobre como eu me sinto nos finais de ano. Na próxima postagem conversaremos sobre o Réveillon.

Bejo. É bejo mesmo, você não leu errado, nem foi erro de digitação. O bejo é meu e eu mando como quiser!

Ensaio Sobre A Tristeza e Outras Cápsulas.

Hoje estou vivendo um daqueles dias em que a tristeza vem forte, sem explicação e impiedosa.

Nesses dias, em que a tristeza me faz folha seca atirada ao chão, tenho ainda mais admiração por todos os meus amigos bipolares. Admiração e respeito.

Deve ser angustiante estar mergulhado em seus próprios fantasmas e ainda ter que ouvir as pessoas dizendo "a vida é tão bonita, sai dessa", "ah, mas você nem está se esforçando", "ficar assim não vai adiantar nada". Amigos e familiares devem aprender que oferecer ajuda a alguém com bipolaridade não é ficar dando pitacos sobre o estado de espírito das pessoas e se elas estão ou não se esforçando para sair da situação. Ser bipolar não é uma questão de esforço, é uma questão de química cerebral, assim como apaixonar-se.

Aliás, muito bem lembrado esse assunto de paixão. Paixão também é química. Recentemente descobri, através de uma amiga (que também é bipolar, vejam a merda: bipolar e apaixonada, a sensação deve ser de um "Redoxon" fervilhando dentro do cérebro) que a química da paixão leva ao menos 3 anos para ser completamente eliminada do organismo da pessoa. Então, caro leitor, se você está apaixonado e não está sendo correspondido, não pense que isso vai passar assim tão rápido, meu conselho é: apaixone-se por outra pessoa. A química será a mesma, mas você pode dar a sorte de ter a paixão correspondida e vai poder trocar noites mal dormidas e travesseiros molhados de lágrimas por sessões de sexo selvagem e travesseiros molhados de suor.

Esses dias o assunto "depressão" volta a estampar as manchetes dos principais jornais, devido ao suicídio do ator Robin Williams, que sofria de depressão e era dependente químico e de álcool. Pela lógica equivocada da sociedade, não demora muito começarão a pipocar debates traçando uma ligação direta entre esses três componentes depressão-álcool-drogas. Assim, se o cara está ligado a algum desses termos, automaticamente estará fadado a ser ligado aos outros. Lógico que algumas pessoas sofrem de depressão e utilizam álcool ou drogas, assim como há quem use álcool e eventualmente esteja deprimido ou use algum tipo de droga ou o contrário. Mas creio ser um erro achar que há uma obrigatoriedade em se discutir sobre depressão, álcool ou drogas baseando-se apenas no caso de uma figura pública que foi vitimado por essa combinação letal. Mas - notem a filosofia adquirida após muitos anos de dedicação aos estudos - "uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa".

Uma coisa interessante que descobri: quando estou essa poça de tristeza, meu TOC e ansiedade diminuem,vejam só! Triste, fico tranquila e serena. Fico imaginando que deveriam vender tristeza em cápsulas. Visualizem a seguinte cena: eu, no meio de uma crise de ansiedade das brabas (dessas que chego a ficar com o rosto vermelho), entrando numa farmácia e perguntando: "qual a sua dose mais forte de tristeza?" e o farmacêutico respondendo: "tenho de 500mg e de 1000mg, acima dessa dosagem, só com receita médica, você trouxe?". Claro que eu não teria a bendita receita, todo mundo sabe que eu detesto ir ao médico, então responderia ao farmacêutico "não tenho receita, me dê um de 1000mg, genérico porque é mais barato".

Aliás, muitas soluções poderiam ser vendidas sob as mais variadas formas. Imagine chegar na farmácia e pedir um "supositório de vergonha na cara" (porque quem não tem vergonha na cara tem mais é que tomar no cu mesmo), ou um "complexo anti-complexos".

Termino por hoje, ou por agora, sei lá... Não tenho como prever se vou sentir necessidade de escrever outro texto ainda hoje. E mesmo que sinta, não sei se vou estar com preguiça de escrever. Paro por aqui, acho que vou ali na farmácia pedir uma pílula de perseverança.



Para Daniele Machado de Oliveira, Luiz Eduardo e Ana Vitória Cabral, em 13/08/2014.





Sobre Fotografias e Necessidades.

Outro dia abri uma caixa onde guardo fotos do meu filho caçula, de quando ele ainda era bebê. Naquela época já existiam câmeras digitais, mas ainda eram caras, então usávamos máquinas analógicas para registrar os passeios, aniversários e outros momentos especiais.

Comecei a refletir sobre o significado das fotos antes e agora, com toda essa tecnologia, no mundo do "tudo-ao-mesmo-tempo-agora", onde celulares fazem de tudo: fotografam, filmam, são rádio, player, computador... só não fazem muitas ligações, afinal, a qualidade dos serviços das operadoras não acompanhou o avanço tecnológico. Já vi app para celular que transforma o mesmo em vibrador, isso mesmo caros leitores! Vibrador!! Obvio que experimentei, né? Mas não curti. Achei muito fraco.

Mas, voltando às fotos.

Antes do advento das câmeras em celulares, as fotos eram memórias de datas importantes, como aniversários, casamentos, viagens, etc. E eram compartilhadas apenas com os mais próximos, que vez ou outra nos visitavam em nossas casas, para um café nas tardes de domingo. Havia todo um ritual para receber visitas nessa época, preparava-se um bolo, passava-se um café, comprava-se pão na melhor padaria do bairro, sem falar nos frios e queijos.

Ainda à mesa, pedia-se licença e ia-se até o quarto, buscar os álbuns de fotos. Havia álbuns pequenos, geralmente cedidos pela própria loja que cuidava da revelação, e havia álbuns maiores, comprados para fotos especiais: as primeiras fotos do bebê, o primeiro aniversário, etc. Cada sequencia de fotos tinha sempre alguma particularidade, envolvia um sentimento, representava alguma coisa. As fotos estavam intimamente ligadas ao emocional das pessoas, ao seu estado de espírito, no momento que foram tiradas.

Na era da tecnologia, onde todos os celulares possuem câmeras (alguma com definição profissional), as fotos perderam muito do seu significado e se tornaram, acima de tudo, instrumento de ostentação e exibição.

Fotos deixaram de ser registros de memórias sentimentais e passaram a ser exibidas indiscriminadamente em redes sociais. Exibe-se fotos de refeições, pés, unhas, roupas, óculos,  e dos próprios celulares que as geraram, claro que a preocupação maior dessa última é posicionar os dedos de maneira a exibir a marca do telefone, afinal ostentar está diretamente ligado a exibir marcas.

O importante, agora, não é mais a viagem dos sonhos, são as fotos que serão exibidas, mesmo que a pessoa tenha ido a determinado local apenas por alguns segundos, só pra dizer que esteve lá, sem tomar conhecimento da história do local, de seu significado e de sua integração com os demais elementos circunvizinhos.

Comer para saciar a fome é completamente fora de moda. O simples feijão com arroz, bife e batata frita está superado. Todo mundo passou a gostar de comida japonesa! Ai de quem ousar postar uma foto do "podrão" da esquina, pois corre o risco de ser tripudiado. Chique mesmo é juntar a família e comemorar num restaurante caro, cercado por pessoas estranhas e comidas caras, porque isso significa que você pode, mesmo que todos estejam carecas de saber que aquele jantar vai custar muito feijão com arroz e ovo nos meses subsequentes, para poder pagar a fatura do cartão de crédito que tornou possível aquele jantar "inesquecível".

Tenho uma amiga que diz que não gosta de fotos em festas, fala que esses momentos são pra ser guardados na memória. Eu a compreendo. Nada como poder acessar nossos arquivos a qualquer hora e em qualquer lugar, independente de qualquer outro fator, como existência de aparelhos celulares, tablets, computadores ou qualquer outro dispositivo de processamento e armazenamento.

Pobre mundo onde a necessidade de aparecer se sobrepõe à necessidade de ser feliz e onde felicidade é confundida com poder de compra. Somos mercadorias em prateleiras de ilusão, torcendo para sermos escolhidos através de nossos rótulos e embalagens, mesmo que nossos consumidores não saibam, ao certo, se nosso interior esconde incomparáveis e inimagináveis prazeres ou se estamos mofados, estragados e podres.

Um bom final de semana a todos!




Tatuagem.

Rasgando minha pele
sinto a agulha que me tatua
a dor dilacerante não me alivia
preciso extravasar muitas lágrimas
escorregar num corrimão de cacos de vidro
até sangrar meu último suspiro.
Preciso me marcar, 
nem que seja à ferro
dilacerar meu corpo
ser imperfeita e triste.
Me anestesiar com o ópio do ódio,
Adoecer o tétano da cólera.
Por essa agulha que me rasga.
Profunda e profana.
Maculando o que havia de mais sagrado,
Mutilando muito mais que a carne,
Ferindo de morte quem já não vivia.

Para Ana Vitória Cabral, em 09/06/2014